quinta-feira, 7 de julho de 2011

O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante

ATENÇÃO: O texto pode conter citações sobre o desenrolar do filme. Caso não tenha visto o filme ainda, tenha cuidado ou o leia após assisti-lo.

Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante, O (The Cook the Thief His Wife & Her Lover, 1989)

Estreia oficial: 13 de outubro de 1989
IMDb



A história narrada no filme “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante”, parece tão simples quanto o seu título: Albert Spica (Michael Gambon), um criminoso rude e violento, visita diariamente o seu restaurante, Le Hollandais, sempre acompanhado de seus capangas e de sua mulher Georgina (Helen Mirren). Cansada das grosserias e bizarrices de seu marido, Georgina flerta com um solitário frequentador do local, Michael (Alan Howard), que é dono de uma livraria. Apaixonados, os amantes encontram-se às escondidas no restaurante, com a cumplicidade do chef de cozinha francês Richard (Richard Bohringer). Quando Albert descobre a traição da esposa, ela e seu amante fogem e se escondem no depósito de livros de Michael; porém, ao encontrá-los, Albert desfecha uma cruel vingança contra Michael, que por sua vez, será vingado por Georgina.

Pode-se dizer que a história é a menor das preocupações de Peter Greenaway (isso não quer dizer que ela seja menosprezada), que sempre foi um cineasta das sensações, priorizando a forma ao conteúdo. Para o diretor, um filme é feito sobretudo de imagens em movimento, portanto, a ele interessa mais a composição do plano cinematográfico do que a composição do roteiro em si. Seu olhar tem a mesma sensibilidade da visão de um pintor (e muito disso deve-se à sua carreira simultânea como artista plástico): ocupa-se em representar meticulosamente as cores na tela, a disposição dos objetos em cena, o movimento dos atores diante da câmera. Tanto que Greenaway chegou a dizer (logo antes da estreia de “O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante”, em 1989): “A única arte que me ensinou algo foi a pintura, eu penso que ela é arte suprema. Se você quiser contar histórias, seja um escritor e não um cineasta”. E a sua preocupação com os detalhes da imagem é o que dá ao filme tantas possibilidades de interpretação.

O filme apresenta uma combinação de sete banquetes, distribuídos entre nove dias, os quais são identificados por menus do restaurante, que auxiliam na separação da narrativa em atos, aproximando a estrutura do filme a do teatro. O prólogo começa com a abertura das cortinas, o que já remete a uma certa teatralidade na representação. As cortinas voltam a aparecer no final, dando a entender que toda aquela história foi apenas uma ficção, uma dramatização. O filme também é montado com um ar teatral, como se o observador estivesse ali, olhando o deslocar dos personagens de um cenário para outro. A câmera, paralela à ação, acompanha os personagens como se fosse o olhar (subjetivo) do público presente.

Também o modo como cada ambiente está caracterizado com um código cromático auxilia que o espectador siga o movimento horizontal da ação. Nesse cenário teatral, a continuidade se rompe: do azul do estacionamento ao verde da cozinha, do vermelho do salão principal do restaurante ao branco do banheiro, assim como o amarelo-dourado da livraria e do hospital.

Sobre o verde, presente na cozinha, o próprio Greenaway diz que "representa a floresta de onde vem todo o alimento, pois se relaciona com a natureza em seu momento de maior vitalidade e exuberância". No entanto, a cor é colocada num ambiente que aparenta estar sempre imundo e fétido. Porém, verde também é a cor que popularmente significa a esperança, e pode ser assim interpretado, já que é na cozinha onde os amantes costumam se encontrar e onde o amor se consuma - como uma esperança de uma nova vida para Georgina, longe da violência e escatologias de seu marido. Também é na cozinha onde está Pup, o menino-anjo, com seu canto castrato, pedindo redenção; e onde está o cozinheiro, sensato e criativo. Será na cozinha a concretização dos principais fatos do filme, tanto para cenas extremamente violentas e degradantes, como para cenas belamente poéticas. Portanto, o verde tanto pode se referir à decadência, à matéria decomposta e à imundície; como também à esperança, vida e discernimento.

O estacionamento é azul, mas, em alguns momentos, o chão parece esverdeado, pois a luz verde da cozinha incide sobre ele, dando a impressão que, de certa forma, os dois ambientes confundem-se. Este é o ambiente mais sujo, onde ficam os caminhões com carnes em putrefação, muitos cachorros e é onde a história tem início - em uma cena que já traz indícios da violência presente em toda a narrativa, quando Albert humilha um homem ao colocá-lo em uma condição subhumana. Mas esse é só o início das cenas violentas que têm como cenário o estacionamento, onde Albert e seus capangas chegam a parecer animais ferozes, como na sequência em que Albert força Pup a testemunhá-lo abusando sexualmente de Georgina; ou ainda quando Albert e seus capangas torturam Pup, cortando-lhe fora o umbigo.

O restaurante é vermelho, "tom de sangue" segundo o diretor, e pode ser visto como a representação da animalidade do ato selvagem da comilança. É uma cor quente, associada aqui, às provocações da gula, da exuberância das atitudes grotescas de Albert; e também pode indicar o perigo que ronda o seu personagem. Por outro lado, pode significar glamour e sofisticação, que contrastam com os hábitos grosseiros do ladrão, o qual, ao mesmo tempo em que é rude e violento, parece se preocupar com a etiqueta, pois insistentemente cobra de seus capangas boas maneiras à mesa, mesmo que ele próprio não as possua.

Antagonicamente, o banheiro, local de expelir excrementos, as fezes, a urina, apresenta-se com uma ligação direta com a limpeza, como uma região purificada. O que pode ser interpretado como uma inversão de conceitos realizada por Greenaway. Para o diretor, o banheiro, local onde os amantes fazem amor pela primeira vez, "é como o paraíso", e assim como ele, tinha que ser branco.

O amarelo-dourado representado no depósito da livraria e no hospital, pode ser visto como o valor dos livros em relação à cultura do homem, bem como a sanidade estabelecida a partir das relações do ser humano sendo tratado. É o poder do conhecimento e da saúde físico-mental, que parece estar exprimido pela cor reluzente do ouro.

Mas as diferenças dos cenários vão além das cores na iluminação e nos objetos de cena. Enquanto o salão do restaurante e o banheiro são impecavelmente decorados e limpos; a cozinha e o estacionamento parecem guardar tudo o que é imundo - a sujeira e a podridão.

Os figurinos, principalmente os de Albert e de Georgina, também sofrem as alterações cromáticas, adequando-se ao ambiente onde os personagens se encontram. Assim, o vestido de Georgina, por exemplo, que era azul no estacionamento, torna-se verde na cozinha, passando a vermelho quando ela está no salão principal, e branco, quando no banheiro.

Mas não é apenas este fato que chama a atenção nos figurinos do filme. Pode-se observar um ar um tanto rebuscado nas vestimentas, que parecem tiradas diretamente de um desfile de alta costura. Também não era para menos, já que o figurinista é o aclamado estilista Jean-Paul Gautier.Há um certo excesso nos detalhes dos figurinos de Albert e seus companheiros, com faixas que cruzam o peito e a barriga, remetendo às roupas do século XVI ou XVII, mantendo uma certa semelhança com os trajes presentes no quadro disposto na parede de fundo do restaurante - “Banquete dos Oficiais da Companhia da Guarda de São Jorge” (1616), de Frans Hals. De fato, o que diferencia os personagens desse quadro são os babados no pescoço que não são utilizados por Albert e seus companheiros. Há aí uma certa paródia e crítica à burguesia britânica, que mantêm seus valores e costumes há décadas.

De maneira oposta, as roupas criadas para Michael, o amante, são ternos discretos, com corte clássico e cores pastéis; e que, normalmente, não alteram muito sua tonalidade nos diferentes ambientes. Michael é um intelectual e não representa, contrariamente a Albert, as classes sociais com maior poder econômico.

Já os vestidos de Georgina são apontados pela discrição e, ao mesmo tempo, pela excentricidade. São roupas de corte simples mas que não dispensam a composição feita pelos detalhes que chamam a atenção - penas, plumas, franjas, luvas, chapéus e bolsas - formando um conjunto sempre vistoso. Seu vestido da cena final, é um espetáculo à parte: possui um ar sado-masoquista, parecendo uma teia - uma alusão, pode-se dizer, da armadilha final que ela monta: ao servir o seu amante assado para que Albert o coma. A teia também pode remeter à ideia de aranha ou, no caso de Georgina, de uma viúva-negra, já que os dois homens que lhe proporcionavam prazer - Michael sexualmente, e Albert com o prazer da comida (já que é o dono do restaurante) - acabam mortos em uma relação direta com ela.


A temática do filme enuncia violência, sexo e comida como fazendo parte de uma vingança que acaba em canibalismo, o que pode ser interpretado como uma reflexão do homem moderno e sua natureza animal. Para isso, Greenaway usa e abusa do grotesco, como na cena na qual os dois amantes fogem para a livraria. Para isso utilizam um caminhão de carnes que fora deixado às portas do restaurante logo na primeira cena. Porém, quando o veículo é aberto, a sua carga apresenta-se podre, em estado de decomposição, com a presença de vários vermes.

É como se a fuga de Georgina e Michael estivesse fadada ao insucesso, como se fosse um prelúdio do que estaria por vir. E, realmente, o que se segue são sucessivas cenas de crescente violência. A começar pela tortura do pequeno Pup, para que ele revele o esconderijo dos dois amantes. Mas este é apenas o começo. Logo na seqüência, na cena em que Albert acha a livraria, presenciamos o seu ato máximo de crueldade: quando ele asfixia Michael fazendo-o engolir o seu livro favorito.

O auge do filme é, sem sombra de dúvidas, a sua cena final: a vingança de Georgina - quando ela convence o chef Richard a assar o seu amante para que este seja servido a Albert. Mas a plasticidade não está presente apenas neste 'banquete' final, e sim em todas as comidas presentes ao longo da narrativa. É o aspecto refinado, a imagem visualmente performatizada, dos pratos servidos por Richard (principalmente os direcionados a Georgina) que instigam os sentidos do espectador. A gastronomia apresentada no restaurante, como arte da composição, entra em oposição com os alimentos da cozinha, que parecem estar sempre sujos, como peixes crus e patos sendo depenados; e com as carnes dos caminhões, que já se encontram no estado de decomposição.

Talvez hoje o filme de Peter Greenaway não cause mais um choque tão grande. Mas a beleza e a plasticidade de sua composição, assim como os vários níveis de relações e leituras que se podem fazer da sua obra, essas são eternas.

Fica a dica!


por Melissa Lipinski


P.S.: Parte do trabalho realizado para a Disciplina de Semiótica do curso de Especialização em Cinema da Universidade Tuiuti do Paraná, em junho de 2011.


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