quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cinema, Aspirinas® e Urubus

ATENÇÃO: O texto pode conter citações sobre o desenrolar do filme. Caso não tenha visto o filme ainda, tenha cuidado ou o leia após assisti-lo.

Cinema, Aspirinas® e Urubus (2005)

Estreia Oficial | no Brasil: 11 de novembro de 2005

IMDb



"Cinema, Aspirinas® e Urubus" narra o encontro de Johann, alemão que percorre o sertão nordestino projetando filmes a fim de vender aspirinas, e Ranulpho, um nordestino que pega carona e vira assistente de Johann. Dois homens com personalidades e visão de mundo bem distintas, convivendo por um certo tempo enquanto viajam pelo interior nordestino na década de 40.

Johann veio ao Brasil para fugir da Segunda Guerra Mundial, que assolava seu país-natal; enquanto Ranulpho sonha ir para a capital do Brasil – o Rio de Janeiro – para fugir da “guerra” que enfrenta todos os dias pela sua sobrevivência. São dois fugitivos, porém de personalidades quase opostas – enquanto Johann olha para uma cultura estranha à sua e acha tudo interessante, Ranulpho reclama de tudo, despreza e sente vergonha daqueles a quem chama de “povo”, e nega aquela terra que o condenou à fome, à sede e à pobreza. Enquanto o filme narra, em primeiro plano, o encontro desses dois personagens tão diferentes, vai também tecendo, como pano de fundo, uma visão sobre o sertão nordestino, a seca que o atinge, a miséria de seu povo, o choque entre as culturas e as identidades, e os efeitos da guerra mesmo em um país dito pacifista como o Brasil.

Mesmo narrando uma história que se passa nos anos 40, o filme consegue ser atual, mostrando as mazelas sofridas pelo povo. A fotografia consegue deixar o sertão nordestino ainda mais árido e inóspito através da dessaturação das cores (que parece deixá-lo sem vida), e da superexposição à luz (que deixa o ambiente mais sufocante). Há uma transposição do tempo – os problemas sociais da década de 40 continuam praticamente os mesmos até hoje. Mostrando isso de forma sutil, o filme talvez tente levar o espectador a refletir sobre o problema, fazer o público identificar-se com aquilo que está vendo para poder lançar um olhar crítico sobre a própria sociedade em que vive. É um filme de ficção que pode até se aproximar do documental por utilizar pessoas da própria comunidade local para representar o povo do sertão nordestino, o que pode gerar relações com o Cinema Novo ou com um cinema neo-realista, mas que, acima de tudo, torna-o um cinema que fala do povo e para o povo.

O filme também aborda a falta de identidade que acomete o povo brasileiro. Ranulpho olha para o “seu” povo, aqueles que passam pelo que ele passa, vivem o que ele vive, e os nega, critica-os. É a falta de identidade. O desprezo pela sua cultura. Sempre olhando para o que é de fora e achando que é melhor do que aquilo se tem aqui – pois assim é “dito” para que se pense. Mas Ranulpho não age assim à toa, é a sua maneira de sobrevivência à sua guerra cotidiana – pensar que no Rio de Janeiro achará uma vida de oportunidades e empregos, onde não passará fome e miséria, quando a realidade, sabe-se, é exatamente o contrário.

Mas não apenas Ranulpho sente-se perdido, Johann também não quer voltar para a Alemanha, coloca a sua identidade em cheque. É alemão, e isso nunca irá mudar. Mas ao mesmo tempo, não concorda com a guerra travada pelo seu país, e decide ficar no Brasil. Não se identifica mais com o seu país. Mas sabe que aqui será tratado sempre como estrangeiro. Os dois personagens passam por essa “angústia cultural”, um certo “despatriamento” causado por idiossincrasias e calamidades.

Ao final do filme, é como se houvesse uma inversão de papéis, uma troca de identidades: Johann que sempre planejara seguir viagem como bem entendesse, se vê obrigado a embarcar para a Amazônia (destino de muitos nordestinos na época), para não ter que voltar a seu país e fazer parte daquilo que tanto repudia – a guerra; já Ranulpho, um nordestino que, em situações diferentes talvez embarcasse com destino à Amazônia, pelo seu contato com Johann, vê-se dirigindo o caminhão deste em direção ao Rio de Janeiro – destino inicial de Johann.

Fica a dica!



por Melissa Lipinski





** Texto originalmente escrito em 2007, durante o Curso de Graduação em Comunicação Social - Cinema e Vídeo, para a disciplina de Cinema Latino Americano.

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